

Quartas transexuais: a atuação da equipe de saúde prisional no atendimento à pessoas LGBTQIA+
Mural de Práticas
Nacional | Brasília
Setembro / 2020 – Atual
Pessoa em privação de liberdade
Promoção da Saúde; Educação em Saúde; Prevenção de Doenças e Agravos; Comunicação em Saúde
Tuberculose; HIV/ Aids; Outras doenças ISTs; Covid-19; Álcool e drogas; Saúde do Homem; Saúde da Mulher; Saúde Mental; Saúde Sexual; Violência contra mulher e LGBTQIA +
Transexualidade; presídio; LGBTQIA+; saúde prisional
Autores:
Aline Xavier da Silva; Isabela Rocha Peixoto; Lenilton de Souza Martins; Fábio William Fernandes; Fernanda Gabriella Aparecida Maciel Araújo.
Do que trata a experiência?
A experiência exitosa a ser relatada é a implementação dos atendimentos da saúde realizados no âmbito prisional com a população transexual na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, especificamente às mulheres transexuais que se encontravam nos presídios masculinos de Brasília e foram realocadas para a Penitenciária Feminina. Em recente decisão do Ministro Barroso do Supremo Tribunal Federal, deliberou-se que pessoas podem cumprir suas penas em presídios e cadeias conforme sua identificação de gênero e orientação sexual, levando em consideração a autodeterminação dos cidadãos, um avanço na garantia desses direitos às pessoas transgênero e travestis em poder optar pelo cumprimento de sua pena em estabelecimento prisional feminino ou masculino, em área reservada, que resguarde sua segurança física e integridade mental.
Desde o início da aplicação desses direitos, quanto à sua execução prática, várias peculiaridades foram observadas e discutidas a fim de se construir metodologias interventivas e processos de trabalho que tenham como foco garantir os direitos das pessoas transexuais. Tendo em vista se tratar de uma população que se encontra em extrema situação de vulnerabilidade social, exposta à transfobia e rotineiramente marginalizada por ter sua identidade de gênero diferente do sexo biológico, a equipe da Unidade Básica de Saúde Nº 15 – UBS15/PFDF, atuante na Penitenciária Feminina do Distrito Federal - PFDF, tem buscado, no que tange aos atendimentos de saúde, aprimorar os processos de trabalho para garantir que os direitos fundamentais dessas pessoas sejam devidamente garantidos. Assim, surgiram as Quartas Trans, dia específico de atendimento realizado apenas para as internas que se identificam como mulheres transexuais, momento em que são atendidas pela psicologia, serviço social, odontologia, enfermagem e clínica médica. Trata-se da execução de um plano terapêutico interdisciplinar que compreende saúde de uma forma ampliada, na qual se reconhece a pessoa em sua integralidade, percebendo a saúde para além do aspecto físico. Garantir a saúde também é reconhecer a pessoa trans como cidadã digna de reconhecimento social em sua totalidade, o que tem amplo impacto na saúde biopsicossocial da pessoa LGBTQIA+. Ressalta-se que a despeito do projeto ter começado sendo realizado apenas nas quartas, ele teve ramificações. Outras ações foram realizadas a partir das demandas identificadas pela equipe durante os atendimentos nas Quartas Trans. Percebeu-se a necessidade de realizar atendimentos em grupo, palestras, atendimentos interdisciplinares com as diversas especialidades do Núcleo de Saúde, ações de educação em saúde, entre outras intervenções e atividades práticas. Existem ainda planos futuros para ampliar o projeto pensando em educação continuada para os profissionais do Núcleo de Saúde, policiais penais e aplicação do projeto nos mesmos moldes para os homens transexuais, respeitando as suas peculiaridades quanto à identidade de gênero.
Cabe ressaltar que a experiência é realizada por toda a equipe de saúde da UBS 15/PFDF incluindo técnicos de enfermagem, técnicos administrativos, outra psicóloga, dentista, farmacêutico e técnica de higiene dental. A equipe toda é essencial para a execução do trabalho.
Que motivos levaram à realização da experiência?
Desde o início de 2021 as mulheres transexuais que se encontram em situação de privação de liberdade foram transferidas da penitenciária masculina para a feminina, o que gerou a necessidade na equipe de saúde UBS-15/PFDF de inovar e criar processos de trabalho que atendam a população transexual dentro do contexto prisional.
Quais objetivos foram pensados?
Os objetivos foram pensados ao longo do processo de implementação do projeto. Ele surgiu a partir da necessidade da equipe em criar um atendimento específico para acolher as especificidades da população LGBTQIA+, além de uma necessidade específica da polícia penal que precisou se reorganizar para evitar o contato de mulheres cisgênero e transgênero, de acordo com a decisão do STF, respeitando que cada uma permaneça na devida ala reservada. Os objetivos principais que apareceram ao longo do processo de implementação do projeto foram:
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Garantir que todas as internas transexuais sejam atendidas pelo núcleo de saúde, a fim de promover e prevenir qualquer agravo na saúde física e mental das internas;
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Educação em saúde quanto à transmissão de qualquer tipo de doença;
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Trabalhar o autocuidado entre as internas, para que estas se responsabilizem com o cuidado da saúde biopsicossocial, proporcionando assim fortalecimento pessoal;
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Resguardar os direitos sociais de reconhecimento do nome no qual a pessoa se autodeclara, salvaguardando o direito de retificação dos documentos, processo identitário este de extrema importância para a saúde mental das pessoas transexuais;
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Assegurar os direitos sexuais das mulheres trans, propiciando o acesso na rede para que elas possam se hormonizar, caso queiram e ainda garantindo o acesso a educação em saúde e métodos de prevenção a ISTs;
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Fortalecer a rede de garantia de direitos das pessoas LGBTQIA+, aprimorando a vinculação de serviços que podem ser acessados mesmo quando egressas do sistema prisional;
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Dirimir o preconceito entre os próprios profissionais possibilitando capacitação continuada e acesso à informação;
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E, por fim, propiciar garantir a saúde biopsicossocial dessas mulheres a fim de que sejam percebidas como pessoas e cidadãs dignas de reconhecimento pessoal e social através do fortalecimento da autoestima.
Qual o passo-a-passo da realização da experiência?
Escolhemos um dia específico para que a segurança não se sentisse vulnerável quanto à organização da escolta. Importante pontuar que as identidades dissidentes ainda são pouco entendidas pela população, o que muitas vezes gera estranhamento e pouca compreensão sobre o fenômeno da transexualidade. Inicialmente houve resistência entre os policiais penais e a própria equipe de saúde por não compreender a vivência de pessoas trans. A falsa crença de que, na verdade, essa população seria composta por homens, desconsiderando a questão identitária de se identificar como mulher, pensamento que era comum entre os profissionais.
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A partir disso, percebemos a necessidade de ajustamento de todos (equipe de saúde, policiais penais e internas) para promover mudança de comportamento adaptação dentro do contexto do presídio feminino. O primeiro passo foi a realização de uma palestra com parceiros da rede especializados no atendimento de pessoas LGBTQIA+: o Ambulatório Trans, da SES/DF. Dessa forma, iniciamos o trabalho para desmistificar o pensamento da equipe de saúde.
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Quanto às mulheres trans, percebeu-se que inicialmente elas estavam adaptadas ao processo de trabalho aplicado no presídio masculino, o que difere muito da realidade da penitenciária feminina e da atuação profissional. O próprio comportamento das internas era diferente quando chegaram na instituição. Tinham grande demanda por medicação psicotrópica, muitas sem a necessidade do uso, eram rotineiramente poliqueixosas e queriam suas demandas prontamente atendidas pela polícia ou pela saúde, muitas vezes ameaçando se suicidar ou se automutilar. Esse comportamento destrutivo costumava ser amplamente usado como uma forma de comunicação para obter o que queriam, como, por exemplo, tentar mudar de cela. Ressalta-se aqui que toda e qualquer ameaça à integridade física das internas sempre foi devidamente respeitada e cuidada pela equipe de saúde e polícia penal, o que contribuiu para uma mudança de comportamento ao longo do tempo.
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Em um segundo momento, realizamos atendimentos agendados nos consultórios do Núcleo de Saúde, garantindo que não houvesse qualquer tipo de distinção entre mulheres cis e trans e todas fossem atendidas seguindo os padrões da UBS-15/PFDF. O projeto foi crescendo a partir da avaliação das necessidades que essa população apresentava. Realizamos atendimentos conjuntos (psicologia e clínica médica, por exemplo), visitas rotineiras aos blocos para se aproximar da realidade de vida das internas, realizamos atendimentos em grupo com caráter psicossocial, mutirões de atendimento da equipe nas celas para avaliar a necessidade de algum acompanhamento sistemático ou emergência, reuniões de equipe para afinar os processos de trabalho, palestras com foco em educação em saúde e prevenção de ISTs, etc.
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Ressalta-se que o projeto ainda não acabou e a cada dia vem tomando mais forma e corpo. Além da necessidade da capacitação continuada para a equipe de saúde, objetiva-se ainda realizar futuramente palestras para os policiais penais e aprofundar e ampliar o projeto abrangendo também os homens transexuais que se encontram na Penitenciária Feminina do Distrito Federal/PFDF. Como proposta futura, pretende-se refinar ainda mais o trabalho em rede com as instituições que atendem a população para que as internas possam ser atendidas também quando forem egressas do sistema pelos parceiros da rede. Objetiva-se ainda que todas tenham o processo de hormonização iniciado, atendidas por profissionais especializados em endocrinologia, processo de encaminhamento este que já foi feito para os profissionais de referência e aguarda devolutiva da Secretaria de Saúde. Por fim, almeja-se também que todas iniciem o processo de retificação dos documentos, o que também já foi iniciado.
Quais os materiais utilizados nas ações?
O principal foi a mobilização e empenho da equipe. Para os atendimentos individuais foram utilizados os consultórios das dependências da PFDF; nos grupos, usamos o auditório. Por vezes, durante palestras ou atendimentos em grupo utilizamos recursos visuais quando disponíveis, tais como filmes ou data show. Contudo estes não são necessários caso não exista o acesso ao recurso.
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Quanto ao envio de imagens, não possuímos o material, haja vista a necessidade da autorização da justiça para que estas sejam feitas no ambiente prisional.
Quais foram os resultados?
Os resultados ainda estão sendo colhidos pela equipe, mas já se percebe mudanças advindas do projeto, como:
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O principal resultado foi a melhoria do comportamento das internas ao longo do tempo. Inicialmente, qualquer problema comportamental entre elas era demandado para que a saúde resolvesse. Conforme os atendimentos foram ocorrendo, as ocorrências policiais de solicitação de atendimento devido à questões comportamentais foram diminuindo;
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As ocorrências de tentativa de suicídio e de automutilação também diminuíram ao longo da execução das atividades;
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A quantidade de uso de psicotrópicos também diminuiu significativamente, haja vista que todas foram avaliadas e são acompanhadas pela psicologia, enfermagem e clínica médica;
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A clara aproximação entre a equipe de saúde e as internas transexuais. Hoje, a equipe possui uma boa vinculação com as pacientes trans;
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Já se percebe uma diminuição da resistência entre os profissionais (tanto da segurança quanto da saúde) em relação às mulheres trans. Contudo, este é um processo ainda em andamento. Como supracitado, a equipe ainda planeja outras ações com este objetivo;
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Outro objetivo que vem sendo alcançado é a capacitação de profissionais da saúde. Ressalta-se que a educação em saúde é necessária na rotina da equipe para afinar o trabalho realizado;
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A necessidade da equipe em aprimorar o trabalho e possibilitar que as internas se hormonizem e tenham acesso à retificação do nome tem como efeito capilar o fortalecimento da rede, por incluir outros agentes da saúde, policiais penais, segurança pública, Instituto de identificação da Polícia Civil e demais parceiros;
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Outra melhoria é a garantia dos direitos sexuais das internas trans, que, além de ter a sua identidade respeitada, tem acesso à saúde, prevenção de ISTs, acesso à camisinhas e testagem rotineira quanto a possíveis doenças. Se faz, assim, um acompanhamento sistemático e preventivo quanto ao adoecimento sexual;
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Por fim, um dos principais objetivos vem sendo alcançado: a garantia de direitos da população LGBTQIA+.
O aprendizado que fica para a equipe? Garantir os direitos de saúde em todas as especificidades e com todas as peculiaridades dessa população tem fator protetivo e preventivo. Acolher as demandas das pessoas trans e reconhecê-las enquanto sujeitos de direito tem um grande potencial interventivo no bem estar dessa população que é comumente vítima de preconceito.
Acredita que a experiência pode ser replicada em outros lugares?
Há possibilidade de replicação da experiência em qualquer presídio. Para tal, se faz necessário a atuação de profissionais de saúde no contexto prisional e a capacitação destes profissionais quanto à saúde e garantia de direitos LGBTQIA+. Pode-se realizar ainda matriciamento dessas equipes, possibilitando a troca entre profissionais e a devida orientação para a implementação em outras unidades prisionais.