

Grupos psicoeducativos para uma sexualidade saudável
Mural de Práticas
Nacional | Brasília
Março / 2012 - Atual
Pessoa em privação de liberdade; Familiares de pessoa em privação de liberdade
Promoção da Saúde; Educação em Saúde
Saúde do Homem; Saúde Mental; Saúde Sexual
Grupo psicoeducativo; Autor de violência sexual; Saúde prisional; Sexualidade Saudável; Atenção Primária à Saúde.
Autores:
Julia Costa Muza; Luciana Beco Madureira; Denis Mantovani; Jessica Alves Soares; Carolina Wernik Porto Carrero.
Do que trata a experiência?
A experiência aqui relatada foi criada e é conduzida pelas equipes multiprofissionais de atenção básica prisional que atuam nas respectivas Unidades Básicas de Saúde Prisional (UBSP) do DF, conforme a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (PNAISP). Sendo a saúde prisional a porta de entrada para as pessoas privadas de liberdade no SUS, podemos considerá-la como um dos principais pontos da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violências, principalmente quando se tratar das pessoas que respondem por crime contra a dignidade sexual (tipificados pela Lei 12.015/2009, tais como, estupro, atentado violento ao pudor, estupro de vulnerável, exploração sexual, entre outros).
Quando os autores destes crimes estão privados de liberdade, são encaminhados pelo Sistema de Justiça para as intervenções da equipe de saúde prisional em grupos voltados à sexualidade saudável. Trata-se de grupo psicoeducativo com foco na reflexão crítica, autoconhecimento, auto-responsabilização e compreensão da legislação sobre crime sexual.
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Assim, optou-se pelo acompanhamento dos autores de violência sexual em níveis: Grupo Nível 1 (grupo de entrada que visa promover a conscientização e autoresponsabilização em relação ao crime sexual); Grupo Nível 2 (grupo de aprofundamento com as temáticas de autocontrole, autoconhecimento e valorização da vida). Cada nível contempla de 06 a 10 encontros utilizando vários recursos: palestras, filmes e dinâmicas), contribuindo para a prevenção de comportamentos indesejados (fatores de risco e fatores de proteção), assim como, ao exercício da sua sexualidade de forma saudável. Além disso, é oferecido atendimento em grupo aos familiares para auxiliar no esclarecimento sobre a importância desse acompanhamento e divulgar informações para a promoção da saúde e prevenção de violências. Tem-se ainda a proposta de capacitação permanente e sensibilização dos profissionais, incluindo-se a saúde e os policiais penais.
Pode-se afirmar, então, que a iniciativa desse trabalho é um marco no acompanhamento dos autores de violência sexual e seus familiares, há pelo menos nove (09) anos no DF, no que diz respeito a atenção básica da saúde prisional, tendo como resultado a elaboração de protocolo de atendimento, que se encontra em fase final de aprovação pela SES/DF, elaborado por Grupo de Trabalho envolvendo os profissionais do SUS, da Administração Penitenciária e do Sistema de Justiça.
Que motivos levaram à realização da experiência?
A partir de 2012, a equipe de saúde prisional da UBSP do Centro de Internamento e Reeducação – CIR iniciou um atendimento voltado aos autores de violência sexual privados de liberdade, a partir de uma determinação judicial da VEP/TJDFT, que na época provocou à SES/DF no sentido de que fosse possível ofertar um acompanhamento em saúde aos internos com tipificação penal prevista nos crimes contra a dignidade sexual e com previsão de progressão de pena. Para atender esse cenário desafiador, a partir das normas de operacionalização da PNAISP (Portaria MS nº 482/2014), estabeleceu-se que as unidades prisionais deveriam ofertar os serviços de atenção básica com atendimento de saúde por meio de grupo psicoeducativo, posteriormente, com a emissão de comprovante de participação do referido interno.
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Todavia, ao se buscar referências para esse atendimento, observou-se que as iniciativas de ações específicas voltadas aos autores de violência sexual são tímidas na realidade brasileira e quando acontecem, são insuficientes, pois a lógica punitiva do sistema jurídico-penal prevalece sobre a perspectiva da prevenção e cuidado a estas pessoas. Em pesquisa realizada nas bases de dados nacionais, não há registro no Brasil de iniciativas sistematizadas ou experiências de saúde pública no interior dos estabelecimentos prisionais voltadas especificamente às pessoas privadas de liberdade por crimes contra a dignidade sexual que possam se tornar exemplo às equipes que hoje atuam nas UBSP.
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Diante dessa realidade, escassez de trabalhos na área, iniciou-se em paralelo a construção de um Protocolo no campo da saúde dos autores de tais crimes, no nível da atenção primária, que se justifica não somente pela sua relevância no campo da atenção básica da saúde prisional, mas também porque permitir definir as especificidades em relação a cada regime penal e estabelecer procedimentos operacionais para a importância da abordagem do Grupo Psicoeducativo, resultando em práticas que devem responder a complexidade da temática. Mesmo que sem a finalidade de tratamento clínico e/ou terapêutico, poderá contribuir para prevenir o ciclo de repetição da violência, resultando em proteção e possivelmente evitando futuras vítimas.
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Neste protocolo propõem-se:
a) Capacitação permanente dos profissionais que atuarem na prevenção às violências sexuais e seus agravos de saúde de forma humanizada às pessoas privadas de liberdade;
b) Aperfeiçoamento do processo de trabalho da equipe de saúde no manejo dos grupos psicoeducativos e o atendimento familiar em grupo, com ações de matriciamento pelos serviços de referência da Rede de Atenção à Saúde (RAS);
c) Diminuição, por parte dos(as) custodiados(as), da negação e a minimização em relação aos crimes cometidos;
d) Conhecimento do perfil do público-alvo a partir de dados implementados e alimentados nos sistemas de informação, que servirão de base para futuras análises.
Quais objetivos foram pensados?
Objetivo voltado ao Grupo com os autores de violência: Promover uma abordagem da saúde pública e de atenção primária no contexto prisional para o manejo de grupos psicoeducativos aos autores de violência sexual, considerando o cuidado integral que envolve o aspecto individual e familiar, com impacto para a sociedade como um todo, quando do reconhecimento e da identificação de fatores de risco e de proteção para uma sexualidade saudável.
Objetivo voltado ao grupo com os familiares: Viabilizar o repensar da prática da violência no âmbito familiar e de que forma tais atitudes violentas podem fragilizar o suporte e apoio dos familiares no cumprimento da pena;
identificar os determinantes sociais e a correlação com as situações de violência para os encaminhamentos necessários à rede de apoio; pensar a violência no aspecto global - sociedade - e de que maneira estes aspectos mais amplos interferem no particular e no cotidiano intra-familiar.
Qual o passo-a-passo da realização da experiência?
À princípio, os grupos foram iniciados em 2012 baseando-se em experiências realizadas em outros países, principalmente Portugal e Espanha.
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Grupo de Trabalho (GT): Instituiu-se o GT com o objetivo de se elaborar um protocolo a partir da sistematização da prática profissional e da pesquisa de literatura, com a produção de fluxogramas e Procedimento Operacional Padrão.
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Definiu-se que as intervenções serão conduzidas pela equipe multiprofissional que compõe a atenção básica da saúde prisional. Aqueles preferencialmente capacitados nas temáticas relacionadas ao Grupo Psicoeducativo organizam-se prioritariamente em duplas, sendo pelo menos um com formação em psicologia ,e de preferência, composta por uma mulher e um homem.
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Definiu-se os critérios de inclusão e exclusão nos Grupos: São elegíveis todas as pessoas condenadas em todos os artigos tipificados no código penal como crimes contra a dignidade sexual, Lei 12015/09, Estatuto da Criança e do Adolescente, encaminhadas pela VEP/TJDFT e/ou Ministério Público do DF – MPDFT. Excluem-se as pessoas privadas de liberdade:Sem condenação por crime contra a dignidade sexual; Cumprindo Medida de Segurança; Em regime provisório; Em unidade de regime semiaberto que não se localiza no Complexo da Papuda; ou que apresentam agravos mentais e/ou físicos que impeçam o atendimento no formato de grupo.
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Definiu-se, então, o seguinte passo a passo para o acompanhamento psicoeducativo:
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O pedido de ofício (VEP/TJDFT e/ou MPDFT) é protocolado pela Direção do Presídio com a solicitação de inclusão do custodiado em acompanhamento psicoeducativo;
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A UBSP solicita à Gerência de Assistência ao Interno (GEAIT) da SEAPE/DF para consultar a sentença criminal que descreve os fatos relacionados ao crime, necessários para a equipe conhecer o contexto da condenação;
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A equipe de saúde realiza entrevista inicial individual para levantamento do perfil do custodiado, conforme os critérios de inclusão no Grupo (em lista de espera);
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Após avaliados os critérios de inclusão, o custodiado deve ser acompanhado durante os encontros em grupo ou individuais de cada Nível: - Grupo Nível 1 (promover a conscientização e autorresponsabilização em relação ao crime sexual); - Grupo Nível 2 (prevenção de recaídas e construção de estratégias de autocontrole).
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Realiza-se uma entrevista final individual para arrematar e sanar dúvidas que porventura tenham persistido junto ao custodiado;
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Providencia-se a emissão de comprovante de participação ao final do grupo, para ser encaminhado via Sistema Eletrônico de Informação - SEI à respectiva GEAIT/SEAPE que será responsável por responder à VEP/TJDFT e MPDFT;
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É feito o acolhimento dos familiares em grupo, após o término do último encontro (de cada Nível) com os(as) custodiados(as). Nessa fase final contempla uma reunião somente com os familiares, visando acolhê-los por meio da escuta empática, esclarecendo sobre o trabalho do grupo psicoeducativo, bem como, identificar situações de risco ou de vulnerabilidade, socializar informações sobre os serviços de saúde e da rede de apoio e realizar os encaminhamentos necessários;
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Havendo necessidade, a discussão de caso pela equipe de saúde prisional se fará a partir das informações contidas nas entrevistas individuais, do grupo com as famílias e dos encaminhamentos do Sistema de Justiça.
Quais os materiais utilizados nas ações?
Folder para as famílias
Quais foram os resultados?
Apesar da inexistência de normativas nacionais e do DF desse trabalho no âmbito do sistema prisional, não se pode negar que muitos avanços de ações de saúde foram conquistados ao longo dos anos, inclusive o trabalho psicoeducativo estendeu-se para várias unidades prisionais do DF com intervenções que abordam as relações de gênero, os impactos das crenças sobre masculinidade tradicional e que perpetuam práticas de violência.
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Houve um esforço da saúde prisional, que culminou no atendimento em torno de 1.500 custodiados por crime sexual. Os atendimentos até então ocorrem em grupos de saúde para homens privados de liberdade que respondem por crimes de caráter sexual, encaminhados pelo Sistema de Justiça. Entre 2012 e 2019, realizou-se 154 grupos voltados ao acompanhamento dos autores de violência sexual no âmbito da saúde prisional do Complexo Penitenciário da Papuda, em unidades de regime fechado e semiaberto.
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Segundo os dados da Secretaria de Segurança Pública do DF, há uma média de mais ou menos 10% no universo de 16.693 custodiados em 2019 respondendo por ações penais relacionadas aos crimes contra a dignidade sexual. Ressalta-se que a privação da liberdade pode apresentar especificidades de acordo com a forma de privação, o que interfere na dinâmica de encarceramento a depender do regime penal e consequentemente, interfere nas rotinas e procedimentos dos profissionais de saúde prisional.
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Sabe-se que a realidade brasileira na atenção aos autores de violência sexual é bem diferente daquela encontrada em outros países. A principal referência vem de países como Portugal e Espanha, assim como há registros de trabalhos realizados também no Canadá e no Chile. Em Portugal, o Centro de Competências para a Gestão de Programas e Projetos – CCGPP, do Ministério da Justiça, desenvolve acompanhamento para pessoas que cometeram crimes sexuais dentro dos presídios com programas de reabilitação no modelo Cognitivo-Comportamental de matriz psicoeducativa. Na Espanha existe, através do Ministério do Interior, o Programa de Controle da Agressão Sexual em Meio Penitenciário, gerido pela Direção Geral de Instituições Penitenciárias.
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Ambas experiências influenciaram o trabalho das equipes da saúde prisional do DF, por seu lastro teórico, histórico de boas práticas e proximidade linguística. Um dado relevante para a elaboração de protocolos de acompanhamento é um estudo realizado na Espanha com internos da prisão de Brians (Barcelona), em que 18,2% dos egressos que não havia seguido o tratamento reincidiram no mesmo crime durante os quatro anos posteriores a sua saída e essa cifra baixa para 4,1% para aqueles que participaram do programa existente nesta prisão.
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Após a reflexão sobre as referências internacionais e nacionais e as implicações jurídico-penais desse atendimento, o GT instituído avaliou que as condições dessa experiência não permitam entendê-la como um tratamento clínico-terapêutico, por não haver condições técnicas e éticas, e em razão da natureza do trabalho da saúde em interface com o Sistema Jurídico-penal. Impossibilitado pela ausência de sigilo devido a presença de escoltas, entre outros aspectos.
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É possível concluir que apenas a privação da liberdade se mostra insuficiente para que o(a) autor(a) da violência abandone sua prática quando retorna ao convívio social; portanto, medidas de acompanhamento de saúde, mesmo que com a finalidade estritamente psicoeducativa, acredita-se que poderá contribuir para prevenir o ciclo de repetição da violência, resultando em proteção e evitando futuras vítimas, corroborado pelas evidências encontradas na literatura internacional que apontam para taxas expressivamente menores de reincidência entre aqueles que recebem atenção de saúde adequada com acompanhamento do indivíduo e da família.
Acredita que a experiência pode ser replicada em outros lugares?
As ações previstas no Protocolo da SES/DF na perspectiva da prevenção e desde que aplicáveis às unidades prisionais e aos internos sentenciados, conforme os critérios definidos para a inclusão e exclusão dos atendimentos em grupos psicoeducativos, constitui-se em uma possibilidade de intervenção em saúde com uma atenção qualificada às pessoas privadas de liberdade que respondem por crimes contra a dignidade sexual. Pode ser replicada prevendo-se equipes multiprofissionais preparadas de forma a atender tais demandas, bem como, a continuidade do cuidado, com a responsabilidade de ordenar o fluxo dessas pessoas nos demais pontos de atenção da Rede e estabelecer relação com os especialistas no território.